Amar é convidar a vida
Minha gata, a Chinchila, me ajudou em um insight. Começou bem singelo, mas acabou se desdobrando em algo maior.
Dizem que gatos são interesseiros, que devolvem agrados porque na verdade querem comida ou algum benefício como passear etc. Não sei, para quem ama gatos isso é bem controverso. Mas a Chinchila definitivamente tem um espírito de cachorro. Faz festa quando chego, “conversa“, me acompanha em caminhadas ou qualquer lugar que vou dentro ou fora de casa, e tudo mais.
Hoje, ela me seguiu até o quarto e ficou lá, aparentemente contente apenas fazendo companhia. Imaginei se estaria recaindo no comportamento que dá má fama aos gatos: “Talvez esteja com fome, sendo manhosa para ver se ganha algum petisco.”
Mas, mesmo se fosse isso, não deixa de ser um afeto. Claro que alguns animais não humanos gostam mais das pessoas tutoras porque, entre outras coisas, é de onde vem a comida. A comida que, em essência, é o bem essencial para sua vida. Nada mais natural: o afeto ou amor dos bichanos se dirige a quem permite ou facilita sua vida — papel ocupado antes pela mãe.
O insight foi que isso não se resume aos gatos, é universal. Tudo o que amamos no fundo também está ligado a isso: à vida, seu florescimento e intensificação.
Obviamente é assim em romances. Mas também no amor por pessoas de nossa família ou amizades. É um sentimento que conecta e, por essa conexão, corre uma energia vital, tão forte que não é raro sentir que esse seria o grande propósito da vida.
Mesmo atividades como esportes ou hobbies geram esse avivamento. Naquele momento, o fluxo é total, as coisas se ligam com sentido e propósito. A pessoa tem a inegável certeza de estar muita viva. Por isso, se entrega com tanta dedicação.
Independente se há um vasto amor imparcial pelos seres ou um limitado afeto dirigido a uma única pessoa, objeto ou atividade, o ponto em comum é a sensação de vida em estado puro, a conexão que permite experimentar plenitude na existência, mesmo que seja temporária e limitada.
O complicador é que também pode ser uma falsa plenitude. Por exemplo, antes de uma pessoa dependente se viciar, em algum momento, a experiência era deliciosamente aliviadora, satisfazia anseios profundos de sua existência.
É por isso que não estou propondo simplesmente uma entrega cega àquilo que amamos ou imaginamos amar. Mas o ponto é que essa busca se conecta diretamente com existir ou viver, com a própria vida. Isso leva a uma consequência: o nível de entendimento sobre o que é a vida — tanto individual quanto o princípio mais amplo —, é proporcional à qualidade, profundidade e extensão do amor envolvido no ato, e da plenitude resultante.
Então o desafio é aprimorar e expandir esse entendimento. Por exemplo, por que limitar o afeto e cuidado a pessoas próximas? Quando o círculo expande, a própria vida começa a ganhar outra dimensão, mais completa.
Pessoas que consideramos adversárias ou inimigas estão na mesma situação. Seria fácil apontar para elas e dizer: “Por que elas não melhoram a compreensão sobre o que é a vida? Seria ótimo para elas, para suas vítimas e para todo mundo.” Também acho, mas a armadilha — em que também caio frequentemente — é ficar apontando assim sem perceber que também tenho muitos pontos cegos para aperfeiçoar.
A vida não está limitada aqui neste corpo, nem no corpo de ninguém. Por mais óbvio que isso soe, é comum imaginar e agir como se tudo o que importasse fosse a minha vida, ou das minhas pessoas queridas, do meu time, lado ou até país.
Mas a mesma vida pulsa em quem ignoro ou condeno, em seres não humanos como plantas ou microrganismos, e até na atmosfera, vital para o equilíbrio. Quase todo caso daquele engano que mencionei — ficar preso em um tipo de satisfação limitada que pode ser prejudicial não apenas para si mas que também espalha danos — pode ser rastreado de volta até uma compreensão incompleta do que é a vida ou existência.
A vida é interconectada, imparcial, descentralizada, totalmente disseminada, se expressando em um princípio básico universal: florescer e ser plena. Mas, dependendo de qual for a compreensão do “organismo hospedeiro”, essa expressão pode redundar em danos.
Consigo escutar uma objeção a todo esse argumento: “Você está dizendo que a solução dos problemas se resume a entender melhor a vida e, então, amar?”
Absolutamente não. A policrise que vivemos e que se agrava sistematicamente exige políticas emergenciais e engajamento ativo.
Entretanto, todas as crises podem ser traçadas de volta até uma visão de mundo que dá carta branca para as causas dos problemas, como concentração de renda descomunal, exploração, supremacismos dos mais variados tipos etc. Por exemplo, há uma ideia de que povos nativos, florestas ou o sistema climático têm menos valor do que o lucro de grandes empresas. Essa ideia só é possível com base em uma compreensão completamente distorcida sobre o que é a natureza ou vida.
Ou então, é comum imaginar que seria inviável mudar completamente o sistema de produção e consumo atual devido às consequências para as empresas, políticos e tudo mais — isso é algo inconcebível no imaginário da sociedade. A incapacidade de sequer imaginar tal transformação também vem de uma visão de mundo que considera a manutenção do atual sistema político e econômico como mais importante do que todo o resto; e todo esse resto acaba sendo as condições apropriadas de vida para a maioria absoluta dos seres e pessoas.
Imagine uma sociedade em que predomine uma compreensão da natureza, ou vida, em acordo com as ciências da ecologia, física, climatologia e com princípios éticos básicos. A vida viria em primeiro lugar. E isso não significaria, por exemplo, exterminar bilionários — eles teriam apenas que ser um pouco menos ricos, se contentando com a não multiplicação frenética de seu patrimônio às custas de todo o mundo.
Então, no final, sim, mudar o modo de enxergar a natureza, o mundo, seres e a si está na base do problema. É uma transição cultural que precisa ser impulsionada e apoiada de todas as maneiras possíveis.
Excelente texto! Deveria ser lido por todos que se prendem num pensamento negativo e reclamam da vida. Muito bom!