Buscar autorrealização é fútil diante da atual ameaça à existência?
O texto abaixo (numa tradução automática, mas bem revisada) é sobre um tema preferido: o encontro das transformações individual e coletiva. Gostaria de ter escrito algo assim, já que tenho uma opinião idêntica e aprecio muito tanto a visão da ecologia profunda quanto o panteísmo de Spinoza.
No núcleo das múltiplas crises atuais — especialmente a ecológica — está uma visão de mundo distorcida e supremacista, que não reconhece nossa interdependência com tudo mais como sendo o aspecto fundamental da realidade.
Como essa visão predomina, por mais que tenhamos carros elétricos, energias mais limpas e tudo mais, se não for corrigida, a espiral descendente apocalíptica continua intacta; apenas adiamos alguns efeitos.
Por que buscar autorrealização?
Diante da crise climática, pode parecer miopia, mas filósofos de Spinoza a Naess argumentam que esse é o único caminho a seguir
(publicado na Aeon, em 22/08/2023)
Por Helen De Cruz
Professora de filosofia e titular da cadeira Danforth em ciências humanas na Saint Louis University, no Missouri. Seus livros incluem "Religious Disagreement" (2019), "Philosophy Illustrated: 42 Thought Experiments to Broaden Your Mind" (2022) e "Wonderstruck: How Awe and Wonder Shape the Way We Think" (lançamento em 2024).
Cada um de nós vivencia a crise climática. Tentamos nos adaptar a ela: comprando máscaras faciais para enfrentar o ar cheio de fumaça ao ar livre ou purificadores de ar para limpá-lo dentro de casa, aumentando o ar condicionado para nos isolar do calor excessivo, preparando-nos para evacuar nossas casas, se necessário, quando outro furacão atingir a costa. Nós nos perguntamos onde podemos nos assentar sem que isso se transforme em um inferno durante nossa vida. Alguns de nós se perguntam se devemos trazer filhos a este mundo.
A crise climática gera perguntas que desafiam nossa própria existência. Nós nos perguntamos: "Quem sou eu neste mundo cada vez mais instável? O que será de mim?" Essas perguntas podem nos levar ao desespero ou a virar a cara, mas, como veremos, elas também podem desafiar positivamente a maneira como pensamos sobre nós.
Nossas circunstâncias políticas e econômicas atuais nos levam a pensar em nós mesmas como engrenagens úteis em uma máquina e em nossa identidade em termos de certos obstáculos que precisamos superar: ir para a faculdade para conseguir empregos bem remunerados, subir a escada da propriedade e garantir que tenhamos uma poupança adequada para a aposentadoria. Entretanto, a crise climática pode nos levar a repensar essas suposições. Para que serve a poupança para a aposentadoria se o mundo está queimando? Precisamos de um conceito muito mais rico de identidade — uma identidade plenamente realizada ("fully realised self") que valha a pena preservar.
O conceito de autorrealização ("self-realisation") reconhece nosso forte impulso para nos preservarmos e perseverarmos diante da crise climática. Esse autoconceito é muito mais rico e expansivo do que é comumente reconhecido. Não é suficiente preservar seu eu estreito e pessoal. Você faz parte de um universo vasto e interconectado, no qual seu bem-estar depende fundamentalmente da manutenção de relacionamentos e conexões com os outros, inclusive com não humanos.
O filósofo norueguês Arne Naess (1912-2009) cunhou o termo "ecologia profunda". A ideia principal da ecologia profunda é que devemos enfrentar a crise ecológica por meio de uma mudança de paradigma. Em vez de mexer em metas concretas (como as emissões de CO2), devemos repensar radicalmente a forma como nos relacionamos com o mundo. Naess foi um filósofo abrangente com interesses variados. Entre muitas outras coisas, ele era um grande fã do filósofo holandês sefardita Baruch de Spinoza (1632-1677), especialmente de sua Ética (1677), que Naess relia com frequência e que desempenha um papel fundamental em sua filosofia ambiental.
Naess é famoso em seu país natal. Ele é considerado um tesouro nacional, amplamente admirado por seu ativismo social, montanhismo, livros didáticos de filosofia e até mesmo por suas piadas práticas e feitos espetaculares, como escalar as paredes do prédio mais alto do campus Blindern da Universidade de Oslo enquanto era entrevistado pela Norwegian Broadcasting Corporation. Ele era um homem de polaridades: por um lado, um membro de uma eminente família norueguesa, nomeado professor titular de filosofia em Oslo aos 27 anos — de fato, o único professor de filosofia na Noruega na época.
Por outro lado, ele publicou seus extensos trabalhos com pouca preocupação com prestígio ou fama, inclusive em revistas ecológicas obscuras com pequenas tiragens. Isso explica em parte por que Naess ainda permanece relativamente desconhecido na filosofia acadêmica em língua inglesa. Especialmente na vida adulta, ele se aproximou do que seu amigo e colega, o filósofo ambiental George Sessions, chamou de "união da teoria e da prática", praticando sua ecofilosofia ao passar muito tempo ao ar livre, fazendo caminhadas e montanhismo até bem depois dos 80 anos. Naess tinha uma dieta vegana espartana que consistia em vegetais cozidos sem tempero. Depois de se aposentar cedo, ele doou grande parte de sua pensão para vários projetos, como a reforma de uma escola nepalesa.
A noção de autorrealização de Naess é inspirada em muitas tradições filosóficas, incluindo o Budismo Mahayana e a filosofia de resistência não violenta de Gandhi. Outra inspiração importante veio de Spinoza. De acordo com sua Ética, tudo na natureza tem um conatus, um esforço fundamental para continuar a existir: "Cada coisa, tanto quanto pode por seu próprio poder, se esforça para perseverar em seu ser".
Vemos essa tendência fundamental não apenas nos seres humanos, mas também nas árvores, abelhas e gansos, e até mesmo em objetos inanimados, como mesas, montanhas e rochas. As coisas não se desintegram espontaneamente e tendem a manter sua forma ao longo do tempo; mesmo algo aparentemente transitório, como um incêndio, tentará se manter. Como podemos entender esse impulso universal? Naess situa o conatus em um quadro maior da natureza, ou seja, um quadro que nos ajuda a perseverar e a nos afirmarmos como expressões da natureza. Spinoza argumentou que existe apenas uma substância, que ele chamou de "Deus" ou "Deus ou natureza". Natureza e Deus são coextensivos, pois Deus engloba toda a realidade. Portanto, o Deus de Spinoza é semelhante ao que hoje chamamos de "universo", a totalidade de tudo o que existe. Essa totalidade se expressa em um número infinito de modos, como o pensamento e os corpos físicos. Nós, como tudo o mais, somos expressões dessa substância única.
Ao contrário de um Deus teísta tradicional, o Deus de Spinoza não tem um propósito geral mais elevado, nenhum grande projeto. Esse Deus é perfeitamente livre e age de acordo com suas próprias leis, mas não deseja nada. A natureza simplesmente é, e ela é perfeita em si mesma. Como Naess disse em 1977: "Se ela tivesse um propósito, teria que fazer parte de algo ainda maior, por exemplo, um grande projeto". Segundo a interpretação de Naess, a metafísica de Spinoza é fundamentalmente igualitária. Não há hierarquia, nenhuma grande cadeia de seres com criaturas inferiores ou superiores. Estamos em um nível ontológico semelhante ao dos peixes, oceanos e besouros. Os interesses de um urso que perambula pelo campo norueguês são tão importantes quanto os das comunidades agrícolas vizinhas.
A natureza como um todo expressa seu poder em cada coisa individual. É dentro dessas expressões de poder que podemos situar o impulso de preservar nosso próprio ser. Para nos realizarmos, precisamos entender o que é o nosso "eu". Naess acha que nos subestimamos, escrevendo em 1987: "Temos a tendência de confundi-lo [o eu] com o ego estreito". O autoconhecimento é parcial e incompleto, e essa falta de conhecimento nos impede de agir bem.
Aqui, mais uma vez, há uma clara influência de Spinoza. Spinoza acredita que o conhecimento e uma maior (auto)compreensão nos ajudam a aumentar nossa capacidade de agir e, portanto, nossa capacidade de perseverar. Podemos perceber essa concepção expansiva do eu considerando nossa relação com o lugar, uma ideia que Naess extrai do pensamento indígena. Muitas vezes nos sentimos apegados a lugares de generosidade e beleza naturais, a ponto de sentirmos que, como disse Naess: "Se este lugar for destruído, algo em mim será morto".
A perda de um lugar já tem efeitos bem documentados sobre a saúde mental, incluindo a eco-ansiedade, que surge de uma sensação de perda de lugares com os quais as pessoas têm uma forte conexão emocional. Quando nosso entorno é prejudicado, nós também nos sentimos prejudicados. As comunidades inuítes do norte do Canadá sentem saudades de casa durante o inverno. Esse sentimento espontâneo de conexão com o lugar nos indica que nosso eu não termina em nossa pele, mas que inclui outras criaturas. Os povos indígenas, por meio de seu ativismo e movimentos de retorno à terra, demonstram que o eu é mais do que essas métricas. Em uma carta de 1988, Naess conta a história de um homem indígena Sámi que foi detido por protestar contra a instalação de uma barragem em um rio, que produziria hidroeletricidade. No tribunal, o homem Sámi disse que essa parte do rio era "parte dele mesmo". Em outras palavras, se o rio fosse alterado, ele sentiria que a alteração destruiria parte de si mesmo. Em sua opinião, a sobrevivência pessoal implicava a sobrevivência da paisagem.
Para Naess, não há nenhum propósito grandioso e externo em nossas vidas, a não ser os propósitos que atribuímos a elas. Mas como nosso bem-estar depende de fatores externos a nós, ainda há algum sentido em que podemos estar pior ou melhor, e é racional lutar para estar melhor. Nesse sentido, a autorrealização é diferente da felicidade. Uma árvore que floresce e se dá bem, com folhas brilhando ao sol e pássaros aninhados em seus galhos, está se realizando, embora não saibamos se ela é feliz.
Um conceito semelhante é articulado no trabalho da autora feminista negra americana Audre Lorde (1934-92). Para ela, sobrevivência não significa apenas ter um teto sobre a cabeça e comida na mesa. Como explica Caleb Ward em um blog recente da American Philosophical Association, para Lorde há uma diferença entre segurança e sobrevivência. Segurança é o que nos dizem que devemos tentar realizar: estudamos, conseguimos uma hipoteca e um emprego para nos proteger das vicissitudes da vida. Por outro lado, a sobrevivência, que está mais próxima da autorrealização, é um conceito que praticamente não recebe atenção em políticas ou conselhos de vida: "a sobrevivência inclui viver e preservar a identidade [, segundo Lorde,] em seus vários aspectos: como negra, como mulher, como lésbica, como mãe". Ward cita um dos discursos de Lorde:
Estou constantemente definindo meu "eu", pois sou, como todos nós, composta de muitas partes diferentes. Mas quando esses "eus" entram em guerra dentro de mim, fico imobilizada, e quando eles se movem em harmonia, ou com permissão, sou enriquecida e fortalecida.
Reunindo essas percepções de Lorde, Naess e Spinoza, podemos dizer que a crise climática prejudica seriamente nossa capacidade de autoexpressão. A degradação do nosso senso de lugar e pertencimento dificulta a nossa realização como seres humanos. Cada vez mais, somos forçadas a nos contentar com a segurança das ameaças imediatas representadas pela degradação do meio ambiente. Não conseguimos sequer começar a pensar em como nos preservar em todos os diversos aspectos de nossa existência e, portanto, não podemos realmente sobreviver. Em parte, é por isso que a crise climática é tão corrosiva para nosso senso de identidade: ela impede nossa capacidade de nos conhecermos.
A autorrealização implica uma unidade de ação e conhecimento: você precisa se conhecer com precisão como parte de uma natureza vasta e interconectada e como algo mais do que um ego limitado. Depois de reconhecer isso, você pode começar a agir. Por outro lado, a falta de conhecimento (de nós mesmos, como concebidos em um todo maior) imobiliza e desmobiliza. Infelizmente, a crise climática é sustentada por um enorme negacionismo. Esse negacionismo é mais do que virarmos a cara como indivíduos. Ele é financiado por elites ricas e empresas de combustíveis fósseis em face da inescapável degradação climática. Como Bruno Latour escreve em Où atterir? (2017) (ou Down to Earth, 2018):
As elites ficaram tão convencidas de que não haveria vida futura para todos que decidiram se livrar de todos os fardos da solidariedade o mais rápido possível — daí a desregulamentação; decidiram que uma espécie de fortaleza dourada teria de ser construída para aqueles (uma pequena porcentagem) que conseguiriam sobreviver — daí a explosão das desigualdades; e decidiram que, para ocultar o egoísmo grosseiro de tal fuga do mundo compartilhado, teriam de rejeitar (...) a mudança climática [itálico do original].
Os super-ricos apertaram o cerco à democracia, criando táticas de distração politicamente motivadas, como culpar as chamadas "elites metropolitanas" (pessoas instruídas) pela piora da situação econômica das pessoas da classe trabalhadora, ou apontar o dedo para os refugiados que chegam em barcos precários às costas dos países ricos. A crise climática está por trás de retrocessos nacionalistas nostálgicos de algum passado imaginário, como o MAGA [“Faça a América ser grande de novo“, a campanha de Trump] e o Brexit.
Diferentemente de outros pensadores recentes, como Jason Stanley, Latour argumenta que esses movimentos são apenas superficialmente parecidos com o fascismo do início do século XX. Em vez disso, eles representam uma nova ordem política que se baseia na negação da mudança climática, em que as elites ricas buscam criar condomínios fechados e rotas de fuga por meio da desregulamentação e da privação de direitos. Enquanto isso, elas tentam (em vão) se realizar em coisas que, em última análise, parecem insatisfatórias e vazias: superiates, viagens curtas ao espaço ou às profundezas do mar, e compra de ilhas inteiras.
Ao influenciar e subverter o processo democrático, elas tentam incentivar a desregulamentação para atrair cada vez mais recursos para si. Percebendo (em algum nível) que isso não é sustentável, elas se refugiam em fantasias cada vez mais remotas, como o TESCREAL (um pacote ideológico de "ismos" [na sigla em inglês]: transumanismo, extropianismo, singularitarismo, cosmismo, racionalismo, altruísmo efetivo e "longo-prazismo"). Isso é promovido por filósofos da Universidade de Oxford, como Nick Bostrom, Hilary Greaves e William MacAskill. Eles preveem um futuro em que a humanidade se transformará em um estado pós-humano (facilitado pela chamada eugenia "liberal" e pela IA), colonizará o Universo acessível e saqueará nossos "direitos cósmicos" de recursos para produzir quantidades astronômicas “de coisas com valor" (para uma visão geral, consulte o recente ensaio de Émile Torres para a Salon).
A felicidade nesses futuros pós-humanos, a maioria dos quais seria digital, justifica a negligência dos problemas atuais. "Para fins de avaliação de ações", escrevem Greaves e MacAskill, "podemos, em primeira instância, simplesmente ignorar todos os efeitos contidos nos primeiros 100 (ou mesmo 1000) anos, concentrando-nos principalmente nos efeitos futuros. Os efeitos de curto prazo sendo pouco mais do que fatores menores". O mundo TESCREAL deixa pouco espaço para a diversidade de expressões do ser humano: as formas contentes, vulneráveis e diversas de ser, por exemplo, das comunidades ciganas, das sociedades indígenas e outras.
Por que as pessoas mais ricas procuram negar ativamente a crise climática em vez de enfrentá-la? A filósofa Beth Lord, com base em Spinoza, argumenta que elas estão sob o domínio de emoções ruins. Normalmente, nossas emoções nos ajudam a buscar o que é bom para nós e a evitar o que é ruim. Temos três afetos básicos: alegria, tristeza e desejo. O desejo é uma expressão do conatus: buscamos coisas que nos trazem alegria e evitamos coisas que nos trazem tristeza. Em geral, isso ajuda a nossa autopreservação. Entretanto, devido às formas complexas com que nossas emoções se misturam, é possível nos enganarmos e desejarmos coisas que realmente não nos ajudam a nos realizarmos. Buscar prestígio, fama e riqueza parece que nos ajudará a nos realizarmos, mas, na verdade, somos dominados por elas e estamos sob seu poder.
Embora essas concepções errôneas sejam proeminentes entre as elites mais ricas, nós as vemos em todos. O especialista em ética Eugene Chislenko argumenta que todos nós podemos ser, de certa forma, negadores da crise climática. Não que neguemos literalmente a existência de uma crise climática ou que influenciemos políticas para alimentar o negacionismo, mas que viramos a cara, como uma pessoa em luto que percebe que alguém morreu, mas não consegue integrar a perda em sua vida. Como escreve Chislenko: "Dizemos que é real, mas raramente sentimos ou agimos como se fosse. Entramos em um site de reservas de passagens aéreas para visitar um amigo no fim de semana; ainda achamos que um dia poderemos ver a Grande Barreira de Corais; não temos planos que correspondam à dimensão dessa mudança".
E a razão para isso é, em parte, o fato de acharmos que enfrentar a crise climática exigiria sacrifícios substanciais de nossa parte, que parecem uma gota no oceano dada a dimensão do problema. Como escreve Naess: "quando as pessoas sentem que precisam abrir mão de seus interesses de forma altruísta, ou mesmo sacrificá-los, para demonstrar amor pela natureza, isso provavelmente é, a longo prazo, uma base traiçoeira para a conservação". Como, então, podemos sair dessa situação de negação coletiva?
Vimos agora o que é a autorrealização e como ela está ligada ao conhecimento. Ao aumentarmos nosso conhecimento, aumentamos nosso poder. Por exemplo, saber que os agentes patogênicos causam doenças infecciosas levou a grandes avanços na prevenção ou redução da transmissão por meio de vacinas. Da mesma forma, para podermos agir diante da crise climática, precisamos de conhecimento e, para isso, podemos nos inspirar diretamente na filosofia de Spinoza.
Spinoza viveu uma existência muito frugal, sem propriedades, em quartos alugados, e tentou ficar longe da fama e dos holofotes. Ele recusou uma cátedra de prestígio na Universidade de Heidelberg e não quis ser nomeado o único herdeiro de um amigo, mesmo que isso o tornasse independentemente rico para o resto da vida, preferindo, em vez disso, lixar lentes para se sustentar. Portanto, ele não achava que o florescimento ou, em sua terminologia, a "bem-aventurança" (latim: beatitudo) pudesse ser encontrada na riqueza material e na fama. Em vez disso, seu trabalho como polidor de lentes oferecia mais oportunidades de autorrealização, porque o tornava parte da comunidade interconectada e emergente dos primeiros cientistas no início da revolução científica, muitos dos quais usavam lentes em seus telescópios e microscópios.
Embora Spinoza não visse a bem-aventurança na riqueza deste mundo, ele também não acreditava que ela pudesse ser encontrada em uma vida após a morte. No século XVII, as pessoas geralmente acreditavam que era possível alcançar a bem-aventurança após a morte se seguissem as normas morais e se abstivessem voluntariamente de certos prazeres durante a vida. Entretanto, a visão radical de Spinoza é que você pode alcançar a bem-aventurança nesta vida. Como ele escreve:
A bem-aventurança não é a recompensa da virtude, mas a própria virtude; nem a desfrutamos porque restringimos nossas cobiças; ao contrário, porque a desfrutamos, somos capazes de restringi-las.
A noção de bem-aventurança está intimamente ligada à visão de Spinoza sobre a autorrealização. Lembre-se de que Spinoza vê Deus como a natureza. A autorrealização exige que compreendamos com precisão a nós mesmos como modos de Deus e, assim, passemos a amá-Lo. Mas o que implica esse entendimento preciso? Uma interpretação recente é oferecida por Alex X Douglas em seu livro sobre o assunto, The Philosophy of Hope (2023). Para Spinoza, a bem-aventurança é uma espécie de repouso da alma ou entrega mental. Ela surge do amor intelectual por Deus ou pela natureza. Para Spinoza, o conhecimento aumenta nosso poder e, portanto, nossa autopreservação, por meio do conhecimento. Se nossas emoções nos enganam (como quando buscamos prestígio ou fama), na verdade diminuímos nossa autopreservação porque somos forçados a servir a bens externos. O conhecimento mais elevado que podemos esperar alcançar é o conhecimento do Universo como um todo. Esse conhecimento também é o conhecimento do eu, porque cada um de nós é uma expressão (modo) de Deus. Douglas esclarece que isso não significa que somos partes de Deus, como peças de um quebra-cabeça. Em vez disso, cada um de nós — uma libélula individual, uma rosa, uma montanha ou uma nuvem — "expressa o todo, em sua própria maneira particular".
Quando você percebe que é uma expressão de toda a natureza, passa a perceber que, embora morra, também é eterna em um sentido não trivial, pois a única substância da qual é uma expressão perdurará. Spinoza também faz a forte afirmação de que, se somos racionais, não podemos deixar de amar a Deus. É a coisa racional a se fazer, porque o amor a Deus surge espontânea e naturalmente de uma compreensão precisa de nós mesmos e do mundo. Quando você se dá conta disso, realiza a bem-aventurança.
Como vimos, Spinoza diz que o florescimento ou a bem-aventurança não é a recompensa da virtude, mas a própria virtude. Quando alcançamos isso, não precisamos mais restringir nossos desejos, pois eles se dissiparão quando alcançarmos essa unidade cognitiva com o resto da natureza. Toda essa conversa sobre moderar as paixões pode parecer moralista e antiquada, mas Spinoza traz à tona um ponto importante, ou seja, o fato de que se envolver em atividades como o "turismo de última chance" — visitar lugares na Terra que logo desaparecerão devido à crise climática — ou a exploração de águas profundas por diversão é, em última análise, autodestrutivo. Da mesma forma, podemos achar que renunciar ao bife ou deixar de viajar de avião, para participar de conferências frequentes ou por prazer, pode ser uma autorrestrição.
Mas, quando nos entendermos como eus ecológicos e compreendermos como fazemos parte de ecossistemas grandes e frágeis e do planeta, isso nos fará sentir como se estivéssemos preservando nosso eu expandido, em vez de nos restringirmos. Como explica Spinoza em seu Breve Tratado sobre Deus, o Homem e seu Bem-Estar (c1660), "uma vez que descobrimos que a busca de prazeres sensuais, luxúrias e coisas mundanas não leva à nossa salvação, mas à nossa destruição, preferimos, portanto, ser governados por nosso intelecto". Paradoxalmente, subestimamos a riqueza de nosso ser ecológico. Não nos damos crédito suficiente sobre como somos capazes de obter contentamento e bem-estar genuínos de prazeres simples que não envolvem a destruição do planeta. Em vez disso, achamos que precisamos de coisas caras e com infraestrutura pesada para nos fazer felizes, sendo que a felicidade está sempre logo ali na esquina.
A autorrealização aumenta nosso poder. Como vimos, corremos atrás de coisas que imaginamos que nos trarão alegria, como riqueza e prestígio, mas que diminuem nosso poder, porque nos têm como reféns. A alegria ativa, em um sentido spinozista, é uma compreensão intelectual de si mesmo e de seu relacionamento com o mundo. Um exemplo disso é o trabalho de Shamayim Harris. Quando seu filho de dois anos, Jakobi Ra, foi morto em um atropelamento e fuga, ela resolveu transformar seu bairro pós-industrial de Detroit, em ruínas, em uma vila vibrante: "Eu precisava (...) transformar o luto em glória, a dor em poder". Comprando casas por alguns milhares de dólares, ela transformou a área na ecológica Avalon Village, com uma biblioteca, energia solar, laboratórios STEM, um estúdio de música, estufas de produção agrícola e muito mais. Essas comunidades resilientes, que podem ser percorridas a pé e que favorecem as crianças oferecem uma grande oportunidade para a autorrealização. Em um senso naessiano significativo, Harris criou um lar para si mesma e para os outros. A ecosofia de Naess tem tudo a ver com lar, mas em um sentido ambiental e ecológico mais amplo, em que a autorrealização é a norma suprema.
A autorrealização tem uma beleza. Por meio de uma conduta sábia e racional, seríamos capazes de encontrar uma nova cidadania, um modo de estar na natureza, uma polis que também inclui animais e plantas não humanas. Esse modo de ser aumentaria nosso poder de ação e responderia ao nosso desejo de autorrealização.
Não há uma maneira definida de sermos. Não há nem mesmo um ideal para o qual os humanos devam evoluir, como no universo TESCREAL. A natureza não tem uma teleologia final. Somos importantes como somos agora, não (apenas ou principalmente) como hipóteses futuras, e podemos imaginar um mundo em que humanos, animais, plantas, e também montanhas e rios, tenham suas próprias identidades multifacetadas e existam em comunidade umas com as outras. Esse mundo pode abrigar a diversidade de pensamento e expressão. Nossa saída para a crise climática deve, portanto, começar por uma reconceitualização de nós mesmas como seres ecológicos e interconectados.
A autorrealização, conforme concebida por Naess, Spinoza e Lorde, é, no fundo, uma visão contente e afirmativa. Ela não parte da premissa de que a vida é inerentemente cheia de sofrimento. Quando alcançamos a autorrealização, viver bem se torna fácil devido à unidade da bem-aventurança e da virtude. Entretanto, é difícil alcançá-la devido ao nosso negacionismo climático coletivo. Não é que um dia acordaremos e nos tornaremos autorrealizados. Precisamos alcançar essa mudança de perspectiva e reconhecer que somos seres interconectados que só podem florescer com o resto da natureza. Talvez seja apropriado terminar com as linhas finais da Ética de Spinoza:
Se o caminho que mostrei para chegar a essas coisas agora parece muito difícil, ainda assim ele pode ser encontrado. E, é claro, o que é encontrado tão raramente deve ser difícil. Pois se a salvação estivesse à mão e pudesse ser encontrada sem grande esforço, como quase todo mundo poderia negligenciá-la? Mas todas as coisas excelentes são tão difíceis quanto raras.
Agradecimentos a Émile Torres, Bryce Huebner, Johan De Smedt, Oscar Westerblad, Phyllis Gould, David Johnson e Ivan Gayton pelos comentários de um rascunho prévio.
Editado por Sam Dresser.