No próximo sábado, vamos iniciar (no Palpung Lekpun Nang) as aulas sobre o Ornamento da Liberação Preciosa, de Gampopa.
Segue abaixo a introdução que escrevi para a tradução do tibetano, que será publicada em breve. Uma versão preliminar pode ser baixada aqui (ainda estou revisando o livro).
Introdução
O Ornamento da Liberação Preciosa é um dos grandes clássicos do budismo tibetano. Foi um dos primeiros textos que sintetizaram de modo abrangente todo o caminho, no século 12. Mas sua relevância não se limita a fatos históricos. Seu brilho aparece realmente em sua transmissão prática de instruções.
Como seu autor, Gampopa, encabeça a linhagem Dagpo Kagyu, o livro é crucial por fornecer a base necessária para a prática de meditação em todas as linhagens Kagyu. Mas isso não significa que seja um “livro básico”, apesar de poder ser lido sim como uma introdução à abordagem tibetana para o budismo Mahayana.
Entre quem o lê, é comum a impressão de que seus ensinamentos são muito mais profundos do que foi imaginado. Já que é uma escritura de 800 anos, de uma outra cultura e direcionada para um público específico, o tom do texto pode soar bastante diferente das introduções ao budismo que costumam ser apresentadas no Ocidente.
No entanto, o Ornamento continua sendo utilizado ainda hoje como um guia inequívoco por pessoas dedicadas ao caminho da iluminação. O fato de que nenhum texto o substituiu em todos esses séculos, nessa linhagem, demonstra bem sua importância.
Nesta introdução, vou sumarizar alguns pontos-chaves sobre o contexto desses ensinamentos, que podem ajudar a expandir o entendimento e apreciação.
Linhagem
A tradição mais ampla desta obra é o budismo Mahayana praticado na região dos Himalaias, sintetizando principalmente os Estágios do Caminho conforme ensinados pelo mestre indiano Atisha Dipamkara (séc. 11). Como o iogue tibetano Milarepa foi o guru-raiz de Gampopa, essa é outra influência decisiva. Por isso, este é um livro “que une as linhagens Mahamudra (de Milarepa) e Kadampa (de Atisha)”, conforme indica o subtítulo.
A tradição tibetana (ou dos Himalaias) em geral preservou as linhagens budistas praticadas na Índia entre os séculos 8 e 13, com base naquilo que mestres tibetanos e indianos trouxeram da Índia. Essas tradições foram mantidas no Tibete com a mesma característica definidora que apresentavam na Índia: elas combinam em um único caminho as três abordagens (ou “veículos”) para a prática budista: Shravakayana, Mahayana e Vajrayana.
Um bom exemplo disso foi um desses mestres que visitaram o Tibete, o próprio Atisha. Ele era um monge1, que enfatizava a compaixão do Mahayana, tendo amplo domínio e realização no Vajrayana.
Sua síntese budista foi tão influente que passou a integrar a base de todas as diferentes escolas tibetanas. Um aspecto fundamental de sua tradição são os chamados “Estágios do Caminho”. Como o nome indica, essa abordagem define as etapas que devem ser trilhadas em uma sequência bastante específica para não haver confusão no caminho em direção à iluminação. Antes de conhecer Milarepa, Gampopa já dominava essa tradição Kadampa.
Na mesma época de Atisha, o tibetano Marpa passou muitos anos na Índia estudando e praticando com diversos mahasiddhas, iogues e ioguinis com imensa realização espiritual. Entre eles, Naropa foi seu guru-raiz. O principal aluno de Marpa foi Milarepa, o mais consagrado iogue tibetano, renomado por ter realizado a iluminação em uma única vida.
A linhagem de Marpa e Milarepa hoje é mais conhecida como Dagpo Kagyu — Dagpo é um outro nome de Gampopa. Isso porque ele disseminou mais amplamente essa tradição, devido às suas dezenas de milhares de alunos e alunas — Marpa e Milarepa não tiveram tantas pessoas estudando com eles. A fama da realização de Gampopa, considerada em nada inferior à de Milarepa, ajudou muito nessa disseminação. Um outro fator foi sua maestria nas instruções Kadampa.
Gampopa
Quando tinha por volta de 25 anos, Gampopa Sonam Rintchen trabalhava como médico, mas sua esposa e duas crianças acabaram morrendo em uma epidemia.
Então, tomou votos de renúncia monástica, rapidamente se destacando pelo domínio dos ensinamentos (que já estudava como praticante leigo) e da prática de meditação, na linhagem Kadampa. Depois, se tornou aluno de Milarepa e meditou como seu professor em cavernas e eremitérios isolados, até a realização completa.
Já como um lama muito renomado, Gampopa costumava ensinar antes de tudo os Estágios do Caminho Kadam, seguidos da prática de Mahamudra, o reconhecimento da natureza da mente e da realidade. Essa foi uma das grandes contribuições de Gampopa. A prática de Mahamudra costumava ser restrita como um estágio Vajrayana avançado, para as poucas pessoas que se qualificavam.
Batizada de “Sutra Mahamudra”, essa passou a ser a mais difundida abordagem para esse tipo de prática nas tradições Kagyu — especialmente no Ocidente. Nela, são enfatizadas as instruções para o reconhecimento gradual da natureza da mente2, dispensando os longos anos de estudo nas faculdades monásticas (shedra) ou até mesmo a iniciação Vajrayana.
Nas outras duas abordagens — Tantra Mahamudra e Essência Mahamudra — há ênfase em meditações tântricas e guru yoga. Essa era a prática principal de Milarepa, mas Gampopa transmitiu isso apenas para alguns de seus alunos, como aqueles que deram origem a todas as linhagens Dagpo Kagyu: Phagmo Drupa, Dusum Khyenpa etc3.
Ornamento da Liberação Preciosa
Assim, o Ornamento contém a essência daquilo que Gampopa costumava transmitir para a maioria das pessoas que o tinham como mestre, sem restrições para seu estudo e prática. Ao mesmo tempo que sintetiza e apresenta todo o caminho de forma acessível, esse texto é uma referência inestimável de consulta constante para praticantes em qualquer nível.
S.S. 17º Karmapa, Ogyen Trinle Dordje, menciona no prefácio da versão em inglês deste texto (traduzida em 2017 por Ken Holmes):
“Nós devemos considerar a leitura do Ornamento da Liberação Preciosa de Gampopa diferentemente do modo como lemos outros livros. Este texto tem o poder de uma transmissão direta de mestre para discípulo.”
Essa é uma referência àquilo que o próprio Gampopa pronunciou: encontrar este livro (ou a Guirlanda Preciosa do Caminho Sublime) é o mesmo que encontrá-lo pessoalmente.
Apesar de sua densidade e de ser um texto obrigatório nas faculdades monásticas Kagyu, seu objetivo não é a erudição. Há uma qualidade essencial muito prática que pode passar despercebida. Um dos mais consagrados mestres desta linhagem, o 1º Kalu Rinpotche, se referiu ao Ornamento assim:
“Mesmo que deseje passar o resto de sua vida meditando em uma caverna, você deve saber de cor o Ornamento da Liberação Preciosa de Gampopa, e deve compreender os ensinamentos de Maitreya sobre a natureza buda4.”
A ideia é que mesmo para quem deseja “apenas meditar”, sem muito envolvimento com “filosofia budista”, a meditação provavelmente será infrutífera sem essa base apresentada por Gampopa. Como diz o ditado tibetano: “Meditar sem conhecimento é como escalar uma montanha sem braços.”
O formato do livro é o de um comentário (shastra) budista clássico. Na maior parte do texto, aspectos do caminho são apresentados, seguidos de citações de escrituras. Como muitas dessas citações repetem a ideia explicada, pode haver uma impressão de redundância. No entanto, essa comprovação escritural é um dos elementos que definem esse tipo de texto, pois todo shastra apenas sintetiza e organiza as palavras do Buda. Caso um texto apresente ensinamentos sem base nas instruções do Buda, ele não é considerado um shastra budista.
Apesar dessa formalidade, o Ornamento transmite o mesmo vigor e dinamismo das escrituras Kadam que transcrevem os vívidos diálogos de perguntas e respostas entre Atisha e Drom, seu principal aluno, ou entre Drom e seus discípulos. Há a interferência frequente de uma pessoa interlocutora fictícia que faz as perguntas que talvez faríamos caso estivéssemos na presença de Gampopa.
Outra qualidade fundamental do Ornamento é descrita no subtítulo “o dharma sagrado que é como uma joia que realiza desejos”. Entre praticantes tibetanos, é comum até hoje a sensação de que falta um ensinamento abrangente e sintético sobre todo o caminho que está sendo praticado, especialmente entre quem não estudou extensamente, não recebeu todas as transmissões essenciais, não possui confiança sobre como se engajar nesses ensinamentos e textos, e não têm contato frequente com a pessoa que ensina.
Essa situação também é bastante comum no Ocidente, e o Ornamento é extremamente valioso como algo que ajuda a preencher essa lacuna. Assim, chamar esse texto de “uma joia que realiza desejos” não é exagero. Ele realmente era, e continua sendo, percebido dessa maneira.
Posso compartilhar uma história pessoal que exemplifica isso.
Quando estudava em Dharamsala, na Índia, minha professora particular de língua tibetana era uma monja sênior — dedicada à prática por mais de cinco décadas — do mesmo monastério onde fui ordenado, o Palpung Sherab Ling. Ela não havia estudado em shedra, nem era do tipo que se dedica a escrituras. Em sua minúscula quitinete, eu sempre notava um único petcha (texto tibetano clássico), no formato ancestral com mais de 60 cm de largura, embrulhado especialmente no topo de seu altar. Quando já tinha mais intimidade, perguntei:
— Que texto é aquele?
— É o Ornamento da Liberação de Gampopa — respondeu com a confiança de quem pode sempre contar com essa transmissão.
Fontes
Concluída em agosto de 2022, esta tradução foi feita a partir da versão revisada em livro (2010) e formato eletrônico do monastério Karma Lekshe Ling (Kathmandu) — que é baseada na versão da Derge Parkang — e também na versão crítica do Institute of Tibetan Classics (2009).
Emersom Karma Kontchog
São Paulo, agosto de 2022.
1 A conduta geral externa — tanto monástica quanto leiga — se baseia no Shravakayana.
2 Isso é precedido pelas preliminares do Mahamudra, que sintetizam o aspecto prático dos Estágios do Caminho e introduzem o Vajrayana.
3 Os oito principais alunos de Phagmo Drupa deram origem a oito escolas Kagyu; entre elas, Drukpa e Drikung. Dusum Khyenpa, o 1º Karmapa, iniciou a linhagem Karma Kagyu.
4 Citado por Ken Holmes na introdução de Ornament of Precious Liberation (2017).