Mobilizar 3,5% da sociedade bastaria para frearmos nossa autodestruição
Publicado originalmente no UOL Ecoa (22/08/2020).
Greta Thunberg em uma das greves pelo clima.
Neste ponto crítico de nossa civilização, em que ou mudamos radicalmente ou perecemos, marcado por um desequilíbrio climático, ecológico e social extremo, cujos efeitos incluem não apenas a Covid-19, mas também danos futuros mais sérios e prolongados a bilhões de seres humanos, uma questão se levanta:
Já que a maioria das pessoas parece não reagir ou nem mesmo reconhecer a seriedade do problema, como seria possível alterarmos esse curso catastrófico? Como conscientizar e mobilizar a maior parte da sociedade?
Na verdade, para mudanças efetivas não precisamos mobilizar mais de 50% das pessoas. Não é necessário nem 20%. Nem mesmo 10%. A porcentagem que precisa ser ativamente mobilizada para se transformar uma sociedade é 3,5% da população.
Esse número foi revelado em um estudo da cientista política norte-americana Erica Chenoweth, da Universidade de Harvard, nos EUA.
Cruzando informações de todos movimentos sociais pelo mundo dos últimos 100 anos, ela descobriu por exemplo que entre os movimentos que chegaram perto de mobilizar 3,5% da população, não houve nenhum que falhou.
Fração pequena, número grande
Essa porcentagem se refere ao número de pessoas que participam de manifestações nas ruas. Se fossem levadas em conta todas as pessoas que simplesmente apoiavam esses movimentos, seria uma fração bem maior.
No Brasil, 3,5% significa mais de sete milhões de pessoas. Obviamente seria bem difícil uma mobilização nas ruas de tal proporção não conseguir seus objetivos.
Mas o número absoluto não é o ponto. O que essa porcentagem mostra é que para transformar o sistema, não é preciso tentar provar para todo mundo que há um problema sério – por exemplo, não é preciso perder tempo debatendo com negacionistas do clima, campanhas massivas de conscientização talvez não sejam necessárias. Basta mobilizar uma fração das pessoas que já simpatizam com a causa.
É essa abordagem, por exemplo, que é usada no movimento Rebelião ou Extinção (XR, ou Extinction Rebellion),
uma mobilização global iniciada na Inglaterra, em 2018, para pressionar os governos a agirem diante da emergência climática e ecológica (que se refere a mudanças desastrosas no clima e a extinção de espécies e povos) em que nos encontramos.
Em setembro, no mundo todo começa uma nova rodada de protestos e ações para que os governos cumpram suas responsabilidades em assegurar condições de vida adequadas. A participação não se limita aos grupos do XR: manifestações no hemisfério Norte costumam reunir ativistas de vários outros movimentos ecológicos, sociais ou simplesmente pessoas preocupadas com a questão.
É esse tipo de mobilização conjunta que precisamos também no Brasil para conseguirmos mudanças eficazes.
Porque precisamos agir
A causa sobre a emergência climática e ecológica não exclui outras pautas, pelo contrário. Por exemplo, o movimento ambiental como um todo já está lutando pelo fim do racismo e políticas prejudiciais a comunidades excluídas, como uma prioridade.
Sobre a crise ambiental, temos pouco tempo para agir. As consequências são lentas e, apesar de o desastre ser algo já presente em muitas regiões, levará mais de uma década para esse colapso ficar óbvio em todo o planeta. Já o tempo que temos para amenizar o desastre é bem curto.
A ONU, por exemplo, afirma que as emissões de gases do efeito estufa precisam acabar até 2030, se quisermos manter o aquecimento global abaixo de 1,5º C – as graves consequências que já estamos presenciando hoje se referem a um aquecimento acumulado de 1,1º C, desde a era pré-industrial.
Diante de um prazo tão apertado, abordagens convencionais como mudanças de hábitos, campanhas de conscientização e petições -- apesar de não poderem ser descartadas -- dificilmente trarão as mudanças no ritmo necessário, já que seus seus resultados são graduais, pequenos e lentos.
É por isso que para termos alguma chance de garantir um mundo habitável para as gerações futuras, ações mais enérgicas e diretas, como manifestações contínuas, são cruciais.
Vitórias
Nos últimos quatro anos, cerca de 1.700 governos (países, prefeituras e estados), incluindo Reino Unido, França, Portugal, Argentina, Nova York e até Recife, com 800 milhões de pessoas sob sua jurisdição, declararam emergência climática. Nos EUA, especificamente, construções de gasodutos foram e continuam sendo suspensas (o metano que vaza na exploração do gás natural aumenta drasticamente o efeito-estufa).
Mudanças rápidas assim não seriam possíveis apenas com campanhas de conscientização e novos hábitos. O fator decisivo foram ações massivas, com milhares de pessoas nas ruas: greves escolares pelo clima (lideradas por Greta Thunberg), dos fechamentos de pontes e avenidas pelo XR e dos bloqueios nas obras dos gasodutos por ativistas da 350.org, Greenpeace entre outros.
Mas há uma armadilha aí: quando vemos movimentos conseguindo vitórias assim, podemos nos sentir um pouco mais otimistas e, então, nos aconchegamos na cadeira com a esperança de que esses ativistas continuem com o bom trabalho, ou... se nos inspirarmos um pouco mais, talvez podemos fazer uma doação, republicar ou encaminhar algo na internet.
Digo isso porque é o que eu costumo fazer muitas vezes. Mas infelizmente isso não será suficiente. Estamos em uma emergência. Alguém tem que fazer o trabalho sujo e exigir o cumprimento de nosso direito básico à vida -- e não apenas para nós, no presente, mas para todas as formas de vida. E esse alguém somos nós mesmos: ninguém fará isso por nós.
A pandemia veio como um golpe na jugular da revolta global ambiental, justamente quando as mobilizações vinham ganhando ímpeto e força, e uma conscientização maior vinha se formando nas sociedades. No entanto, chegou a hora de continuar. Tomando as devidas precauções com a pandemia, é possível realizarmos ações razoavelmente seguras, com distanciamento social.
Não-violência
Outra estratégia crucial dos atuais movimentos climáticos se refere ao uso de métodos não-violentos como algo não apenas mais ético, mas também como o mais eficaz para a pressão por mudanças. Esse também é um ponto que foi revelado no estudo de Erica Chenoweth.
A pesquisa apontou que movimentos não-violentos tem chances de sucesso 2,5 vezes maiores do que os violentos -- e os movimentos que usam violência acabam tendo vida curta, por exemplo, revolucionários que tomam o poder à força acabam sendo derrubados também com violência.
Voltando à porcentagem de 3,5%, no Brasil, estamos ainda há anos luz dessa participação. Para dar uma ideia do baixo engajamento médio em movimentos, arrisco aqui uma estimativa baseada puramente em minha experiência aqui e no exterior, e também em informações de terceiros, como livros ou menções de outros ativistas.
Geralmente, a porcentagem de pessoas em uma lista geral que participa ativamente fica em torno de 5% e 10%: ao convidar os participantes para uma palestra, por exemplo, é essa quantidade de pessoas que aparece. Já para ações mais diretas, menos da metade desse 5% topa.
Assim, fica claro que é preciso contar com o apoio geral de muito mais que 3,5%, para que a parcela ativa do movimento seja significativa.
Mas em contextos diferentes, a participação é muito maior. Por exemplo, durante a mobilização dos “caras pintadas” pelo impeachment de Fernando Collor. Ou então o movimento Otpor ("resistência"), na Sérvia, que derrubou o sanguinário ditador Slobodan Milosevic, em 2000. Nesses dois casos, devido a uma indignação coletiva onipresente, contar com a partipação ativa da sociedade foi algo mais fácil.
No Brasil, há uma indignação parecida sobre à perda da Amazônia e seus povos. Nesse tópico, pode não importar muito se somos de esquerda ou direita, quando consideramos puramente o que está acontecendo. Um exemplo disso é a "pauta verde" que está sendo discutida no Congresso, que conseguiu unir ruralistas e ambientalistas em uma causa comum: a necessidade de preservarmos nossas florestas (apesar de as motivações serem mistas).
Já há coletivos que unem diversos grupos com essa causa comum, como a Assembleia Mundial pela Amazônia, e sem esse tipo de abordagem, que une o maior número possível de movimentos, será improvável revertermos o curso de nossa autodestruição.
Saiba mais:
"Why Civil Resistance Works - The Strategic Logic of Nonviolent Conflict", Erica Chenoweth e Maria J. Stephan
"The success of nonviolent civil resistance", Erica Chenoweth, palestra no TEDxBoulder