Natureza da realidade, capitalismo e neoliberalismo
A ideia de que há um sistema maligno dominando o mundo já é um sentimento quase universal. Apesar disso, não é fácil identificar o que é isso exatamente. É algo tão difuso e espalhado, praticamente onipresente, que não enxergamos com clareza, assim como um hipotético peixe senciente não teria palavras para o oceano, ou então o fato de que alguns indígenas não possuem um conceito separado para "meio ambiente". Está tão perto que some de vista.
Já escrevi sobre isso usando essa palavra, "sistema", mas ela é um clichê meio insustentável, pensando melhor. Além de figurar como personagem de filmes e séries, e alimentar teorias da conspiração, também foi sequestrada por extremistas de direita, em um golpe certeiro para canalizar essa tão disseminada sensação de opressão, sufocamento e fim do mundo.
Basicamente um sistema é um mecanismo composto por diversas partes. Há algo assim dominando o mundo como conhecemos? É difícil dizer que não.
Seria isso o capitalismo? Suas corporações? Seus políticos?
Cadeia de seres
Um autor que acompanho é o economista Umair Haque. Ele responde apontando uma ideia central que é o germe disso tudo: a noção de que o ser humano é o topo da "cadeia de seres". Esse é um antigo conceito metafísico de hierarquia que se consolidou nesse formato reducionista após o Iluminismo, e hoje acaba sendo a base intelectual para as mais diversas formas de exploração.
Já que o ser humano seria superior a outras formas de vida, elas podem ser exploradas e descartadas como coisas inferiores. E essa mentalidade supremacista então se desdobra em outros tipos de hierarquias fictícias: ricos acima de pobres, supremacismo branco, Norte Global tendo vantagens sobre o Sul, a lei do mais forte etc.
A filosofia budista tem em seu núcleo algo também nessa linha: a fonte de todo sofrimento é a "ignorância". Em sua forma mais básica e germinal, ela é definida como uma fabricação conceitual em torno de um eu que se considera mais importante do que todo o restante; por isso, esse eu sente-se livre para prejudicar em nome da obtenção de benefícios. É por isso que o budismo Mahayana enfatiza a compaixão, definida basicamente como uma atitude altruísta que é o oposto dessa ignorância maléfica.
A diferença é que, no budismo, fica sublinhada a dimensão individual desse problema. No entanto, quando essa dinâmica é extrapolada em grupos sociais, empresas, política, economia etc, aparece de novo a atitude de uma porção ultraminoritária da existência que se autoconcede privilégios especiais para a exploração alheia.
Então concordo que, no final, o que está por trás da grande maioria das crises que vivemos é um engano sobre a verdadeira natureza da realidade, incluindo aí uma confusão sobre a devida posição humana e dos interesses egoístas nisso tudo. Mas concordo também que resumir tudo a apenas isso é um simplificação que acaba negligenciando dimensões amplas cruciais, como sociedade, ambiente, política etc.
Acredito que os dois aspectos precisam ser abordados. Mais emergencial talvez seja a situação coletiva, hoje em estado crítico.
O que é capitalismo?
Peguemos, por exemplo, o capitalismo. Essa é outra palavra que já se tornou difícil de definir, pois sua esfera de domínio chega tão perto, está tão disseminada, que isso se confunde com a própria realidade. Uma definição crítica bem nítida é a da economista Kate Raworth, autora de Economia Donut, obra que consegue furar um pouco a bolha, tendo também influência em setores menos esquerdistas.
Segundo Kate, capitalismo não é apenas um sistema econômico baseado em propriedade privada e mercados, porque isso existe há milênios. O que particulariza esse sistema é a necessidade de haver muitas pessoas que só podem negociar sua mão de obra (ou seja, pessoas “pobres”). A razão de ser do capitalismo é dar lucro para quem possui bens (empresas ou porções delas, propriedades, ou dinheiro emprestado com juros). Uma consequência óbvia é que ricos ficam mais ricos. Além disso, esse sistema tende a degenerar as condições do meio ambiente, de pessoas assalariadas, a extinguir terras e culturas nativas, a privatizar bens públicos como saúde e transporte, e a dominar a mídia, Justiça e política em prol de seus interesses.
Outra característica decisiva, que eu acrescentaria, é que esse sistema, apesar de tudo isso, consegue criar e manter a ilusão de que é benéfico. Os críticos seriam todos "socialistas", e não seria preciso dar ouvido a eles porque "além de o socialismo ser um projeto falido, o capitalismo obviamente traz mais bem-estar".
Não sou socialista de modo nenhum. Mas ao escrever isso serei visto assim por quem defende a atual situação. Essa é uma das vitórias do capitalismo. Ele não aceita críticas e as neutraliza automaticamente.
É muito difundida a ideia de que o capitalismo é o melhor sistema econômico, ou o que mais deu certo. Na verdade, é difícil sustentar essa opinião com fatos. Levando em conta o índice de bem-estar das pessoas — e diversos fatores como educação, emprego, liberdade, lazer, coesão social etc — o sistema político-econômico campeão na história recente é o dos países nórdicos, baseado em social-democracia (considerando apenas os dados disponíveis, já que não há estatísticas do tipo sobre sociedades ancestrais igualitárias, ou zonas autônomas temporariamente liberadas).
Mas esses países não são capitalistas? Sim e não. Não vou entrar nesse complexo tema, mas basicamente a social-democracia defende princípios socialistas operando em uma sociedade democrática de economia capitalista, para uma transição gradual e pacífica rumo à utopia igualitária (para quem quiser se aprofundar no tema, sugiro o livro The Primacy of Politics, de Sheri Berman).
Novamente, não estou defendendo a social-democracia como o sistema ideal, esses países também tem muitos problemas. Como já escrevi antes, eu acredito na auto-organização anarquista como sociedade ideal. No entanto, governos social-democratas são um ambiente muito mais propício para o florescimento e desenvolvimento desse ideal do que o capitalismo neoliberalista.
Fundamentalismo
Um pilar central do atual dogma é a fabricação e manutenção constante desses mitos em torno do capitalismo e neoliberalismo.
"Neoliberalismo" é outra palavra que paira no ar como algo onipresente. Sua forma também é muito difícil de reconhecer com precisão. Essa própria palavra é um obstáculo para a compreensão da realidade atual. Tanto que alguns autores estão usando no lugar dela o termo "fundamentalismo de mercado".
Uma dessas autoras é a historiadora estadunidense Naomi Oreskes. Um livro dela bem influente é Merchants of Doubt (há uma versão em documentário), sobre como a mesma tática de desinformação usada pela indústria do tabaco para confundir a opinião pública sobre os malefícios do cigarro (com estudos científicos comprados) foi usada pelas corporações de petróleo, para plantar dúvidas sobre a realidade das mudanças climáticas provocadas por combustíveis fósseis.
Seu livro mais recente, que foi pesquisado durante uma década, The Big Myth — How American Business Taught Us to Loathe Government and Love the Free Market, é exatamente sobre como a doutrina do fundamentalismo de mercado foi sendo construída e empurrada goela abaixo da opinião pública, com campanhas de manipulação e desinformação, ao longo de mais de um século. Foi um trabalho tão longo e eficaz que, hoje, muita gente considera, por exemplo, os princípios neoliberais como fatos econômicos, ao invés de opiniões políticas (que favorecem os favorecidos).
Um dos princípios básicos dessa doutrina é a noção de que o "mercado" deve operar com liberdade total, e a intervenção do governo precisa ser mínima ou até zero. Sempre ouvimos alguém comentando sobre a "burocracia estatal corrupta", "tem que privatizar" etc. É bem possível até que concordemos, sem imaginar que a difusão dessas ideias podem ser traçadas com precisão até as campanhas financiadas pelas corporações interessadas em menos impostos e regulações trabalhistas ou sociais.
Não é uma questão de negar a corrupção em governos ou seus obstáculos burocráticos. Mas, por exemplo, voltando ao exemplo dos países nórdicos, não é por acaso que eles também são campeões em intervenção estatal e arrecadação de impostos.
"Fundamentalismo de mercado" é um termo preciso porque fundamentalismo é exatamente isso: a negação completa dos fatos que contrariam sua opinião, junto com uma ferrenha fixação em um dogma. As falhas flagrantes desse sistema são tratadas como se não existissem, assim como outras opções que já se provaram eficazes.
Um trecho do livro de Naomi:
Intencionalmente ou não, fundamentalistas do mercado se tornam defensores dos interesses das pessoas que têm mais dinheiro. Em uma economia de mercado, é o dinheiro que manda, e quanto mais dinheiro alguém tiver, mais mandará.
Liberal?
Claro que neoliberais rechaçam essa caracterização como fundamentalistas. "Neoliberal" soa como algum tipo exótico de pessoa, mas não é nada difícil encontrá-la. Não precisamos ir até a Faria Lima ou a bolsa de valores. Basta ler algum desses inúmeros editoriais político-econômicos nos jornais ou ver o noticiário econômico. Afinal, as empresas de mídia — como qualquer outra corporação — defendem as políticas que vão beneficiá-las. E o público acaba convencido.
Os difusores desse fundamentalismo rejeitam até a palavra "neoliberal" como algo pejorativo, dizendo que essa doutrina não teria nada de nova ("neo"), mas seria a mesma coisa que Adam Smith, o pai do liberalismo, defendia. Isso não é exato, já que Smith reconhecia a necessidade de regulações governamentais no caso de perigo ao bem público. No novo tipo de liberalismo que foi sendo moldado conforme a obsessão com lucros, a própria ideia de "responsabilidade social" passa a ser rejeitada, como proclamou Milton Friedman, um dos pais do neoliberalismo.
"Liberal" é outra palavra que costuma provocar confusão. Afinal, alguém "liberal" defende a liberdade; como isso não seria bom? Também não vou adentrar esse vasto tema, mas basicamente a liberdade referida aí é a econômica, ou seja, a liberdade para proprietários e suas empresas se autogerirem, sem a interferência de regulações do governo, como leis trabalhistas, responsabilidade socioambiental etc.
É possível que você já tenha ouvido falar que essa liberdade econômica é sinônimo de liberdade política, ou seja, defender a liberdade das empresas seria a mesma coisa que defender a liberdade individual ou política.
Esse é outro mito propagado no fundamentalismo de mercado. Outro pai do neoliberalismo, Friedrich Hayek, defendeu exatamente isso em seu clássico O Caminho da Servidão. Esse caminho do título é um hipotético trajeto em que a interferência do governo nas empresas necessariamente terminaria em ditaduras do tipo União Soviética. Isso jamais foi provado. O contrário é que se mostrou verdadeiro: programas governamentais de bem-estar social não levam a ditaduras, e podem ser bastante eficazes, não apenas no exemplo dos países nórdicos, mas também na Europa pós-guerra em geral, no Canadá e na Austrália.
Bom, esse texto já ficou muito maior do que eu imaginava. Meu plano era só escrever sobre The Big Myth. Foi o melhor livro que já li sobre capitalismo e neoliberalismo. É possível que se torne um clássico, já que detalha para o público não especializado como se formou esse consenso fabricado para beneficiar grandes corporações, que literalmente arruína tudo ao redor e hoje rege o mundo.
Tudo isso pode soar político demais, mas penso que é importante reconhecer como essa dimensão não está nem um pouco separada de questões consideradas espirituais ou éticas, mesmo em um nível individual.