O desafio que é se abrigar no refúgio das Três Joias
Reflexões sobre tradução de escrituras budistas e as dificuldades da prática
Este é um texto de interesse exclusivo para praticantes budistas ou simpatizantes. Como são reflexões bem pessoais, estou escrevendo aqui, em vez de publicar no palpungsp.org.
Tenho dedicado um bom tempo para a tradução do clássico Ornamento da Liberação Preciosa, de Gampopa. Muitos vezes fico com uma impressão de assombro e espanto diante dessa escritura de quase mil anos, sentindo um minúsculo fio daquilo a que Gampopa se referia quando disse que, para praticantes do futuro, ler esse texto seria como encontrá-lo cara-a-cara.
Traduzir é um exercício ótimo para a prática. Além disso, frequentemente me surpreendo ao examinar e rever diversas expressões em português que dava por garantido, como “tomar refúgio”, “quatro pensamentos que transformam a mente”, “Seis Perfeições” etc.
Por exemplo, quase na metade do livro, no capítulo sobre refúgio, é que fui me dar conta de que “tomar refúgio” — algo que todo budista que fala português recita, conversa sobre, e pensa — provavelmente não é a melhor tradução para “skyabs su mchi”, a expressão tibetana equivalente (a tradução literal é algo como “refugiar-se na proteção”).
“Tomar refúgio” foi vertido diretamente do inglês “take refuge”. Em inglês, como essa expressão é usada também coloquialmente fora do contexto budista, a maioria compreende facilmente do que se trata: buscar proteção, ou se abrigar em um local seguro. No entanto, em português, “tomar refúgio” é um termo técnico ou jargão budista, não é usado — e, consequentemente, não é compreendido — coloquialmente. Imagino que isso talvez esteja contribuindo para um mal entendido bastante difundido até entre budistas veteranos: não saber exatamente o que significa tomar refúgio.
É comum imaginar que isso é um tipo de oração ou pedido, em vez de algo que precisamos realizar ativamente o tempo todo.
Há uma história sobre um mestre budista muito instruído ensinando no ocidente que, por inábil grosseria, ofendeu abertamente à plateia dizendo que ocidentais budistas não têm ideia nem do que é se refugiar nas Três Joias. Foi particularmente embaraçoso pois havia professores ocidentais do Dharma entre o público. Mas refletindo melhor depois, com a explicação que se seguiu, alguns desses professores concordaram.
No entanto, não compreender bem isso — o processo ativo envolvido para se refugiar nas Três Joias, que é a condição e a base para todas as práticas ensinadas pelo Buda — não é uma confusão exclusiva de ocidentais. E, na prática, eu também me incluo nisso, já que frequentemente falho em me refugiar adequadamente.
Uma das histórias mais contadas por lamas tibetanos trata exatamente disso. Drom Tonpa, o herdeiro espiritual do pandita indiano Atisha, encontra um monge andando em volta de uma estupa e pergunta o que ele está fazendo.
— Estou circumambulando esta estupa para acumular mérito.
— Ah, circumambular é ótimo, mas melhor seria praticar o Dharma...
O monge entende a repreensão e, então, vai ler escrituras. Mas o mesmo diálogo se repete:
— Melhor seria praticar o Dharma...
Ele então senta para meditar e, depois de escutar a mesma coisa, pergunta:
— Como é então que devo praticar o Dharma?
— Abandone as preocupações com esta vida.
“Abandonar as preocupações com esta vida” não se refere a largar tudo e ir para uma caverna, mas sim deixar de perseguir objetivos materiais e egoístas como uma obsessão, do contrário, é impossível praticar realmente o Dharma.
Buscar abrigo no “local seguro” que são as Três Joias só é possível após reconhecermos que onde estamos, além de não ser seguro, na verdade é extremamente perigoso: é um círculo vicioso infinito de sofrimento insuportável, o samsara. É por isso que Atisha era chamado de “o pandita do refúgio”. Lembrado historicamente como um tipo de reformador do budismo tibetano, Atisha tratou de enfatizar em seus ensinamentos que o modo como muitas pessoas praticavam no Tibete desconsiderava os princípios básicos do refúgio e da boditchita.
Quando não temos um reconhecimento agudo sobre o sofrimento cíclico e sem sentido onde estamos imersos, o refúgio pode se tornar apenas palavras vazias, e a prática budista vira mais um item em nossa lista de coisas a adquirir. É aí que também costumo falhar de modo retumbante.
A antiga tradição Kadampa de Drom e Atisha é tão amada porque nos lembra constantemente disso em seus textos e anedotas. Em outra história na mesma linha, Drom estava sendo informado sobre os feitos de seus principais discípulos que haviam partido. Um havia construído um monastério, outro conseguiu muitos discípulos, outro ganhou renome devido ao elevado grau de instrução etc. Mas um deles foi mencionado com desdém, por aparentemente não estar fazendo nada de útil:
— Ele passa os dias numa caverna chorando...
Drom então tira o chapéu, junta as mãos em prece e se regozija intensamente:
— Ah, pelo menos alguém está praticando o Dharma.
Por conhecer bem esse discípulo, o professor sabia que a prática principal dele era a contemplação do sofrimento no samsara, refúgio e boditchita.
Frequentemente, os lendários praticantes Kadampa são lembrados como mestres que se iluminavam praticando apenas refúgio e boditchita. É comum ouvirmos isso com certa descrença, como se fosse um exagero histórico, afinal como isso seria possível?
Um trecho sobre o refúgio absoluto do Ornamento de Gampopa esclarece:
... sobre a fonte de refúgio que é a natureza essencial, a pessoa se prostra, faz oferendas e se refugia na proteção, dentro da pureza completa das três esferas: já que todos os fenômenos são primordialmente sem eu, não existindo como nenhuma entidade sólida, o Buda, Dharma e Sangha também devem ser vistos assim. Este é o refúgio inesgotável, permanente e imutável. Sobre isso, o Sutra Solicitado Pelo Rei Naga Anavatapta diz:
— O que é ter se abrigado no refúgio com uma mente livre da fixação na materialidade?
Ao reconhecer a não existência de todos os fenômenos — não sendo formas, não tendo características, não tendo existência —, com a visão da completa pureza da budeidade, então isso é ter se abrigado na proteção do Buda. Ter a visão de que todos os fenômenos compartilham a natureza do Dharmadhatu é ter se abrigado na proteção do Dharma. Ter a visão da não dualidade de fenômenos compostos e não compostos é ter se abrigado na proteção da Sangha.
A tradução deste capítulo está disponível no site do centro Palpung Lekpun Nang.