Podemos escolher: autodestruição ou evolução
Se a civilização humana perdurar, este período será lembrado e celebrado como o momento em que nossa autodestruição ficou tão óbvia e insuportável que acordamos e mudamos
(publicado originalmente no UOL Ecoa em 16/06/2020)
Há alguns meses saí de um período de meditação intensa. Foram três anos e meio sem internet, telefone, TV... e caí direto neste cenário apocalíptico. Meu contato com o mundo exterior era basicamente os mestres visitantes e uma carta a cada dois meses.
Sou um monge budista, mas escrevo a partir de um nível mais fundamental, que compartilho com todos, não apenas como um ser humano preocupado, mas como uma expressão da vida em si, olhando seus próprios reflexos.
Este é um momento único na história humana: simultaneamente, estamos vivendo a primeira pandemia planetária da era da informação, o início do colapso do clima, a sexta extinção em massa na Terra e o desdobramento de toda uma convulsão social, política, econômica e — principalmente — humana, que retroalimenta essa crise de todas as crises.
Se conseguirmos sair mais ou menos bem dessa, se a civilização humana como conhecemos perdurar, este período provavelmente será lembrado e celebrado pelos próximos mil ou dois mil anos. Será o momento em que nossa autodestruição ficou tão óbvia, tão insuportável que acordamos e mudamos.
Mas despertar é um processo ativo, não basta ficar esperando os outros fazerem alguma coisa. É o momento de agirmos, cada um, ou padecer para sempre.
Retomada de entendimento do mundo
O monge Emersom Karma Konchog passou três anos em retiro na costa leste dos EUA. Imagem: Arquivo pessoal
Nesse isolamento, ouvi de um professor de meditação que o aquecimento global tinha saído do controle e fiquei desolado com a notícia de que os Estados Unidos (o 2º país que mais polui) haviam abandonado o Acordo de Paris, sobre redução de emissões, para conter o aquecimento global. Em 2015, eu tinha comemorado tanto esse acordo, apesar de imperfeito.
O aquecimento não era novidade. É algo que sentia na pele aqui na costa leste dos EUA, que tem verões muito piores que o Brasil: ondas de calor cada vez mais extremas, infestação de insetos aumentando e a disseminação geral de uma conhecida moléstia norte-americana: a doença de Lyme, transmitida por carrapatos, que pode provocar de dor de cabeça, nas juntas e membros até dano permanente em nervos. Com a crise climática, essas espécies estão se espalhando mais, aumentando o risco do contágio.
Durante meu retiro, seis pessoas próximas contraíram a doença — e uma delas quase morreu. Hoje, a doença, que para ser curada precisa ser tratada em seu estágio inicial, está se disseminando em todo o mundo, com meio milhão de contaminações por ano, incluindo o Brasil.
Como encarar a distopia?
Passar três anos meditando em tempo integral é uma experiência profundamente transformadora. Mas saí do retiro preocupado, não apenas com esses sinais da natureza, mas com minha própria saúde (também fui picado por carrapatos). Quando comecei a me atualizar com as más notícias pelo mundo, foi como ser pulverizado por um jorro concentrado de desgraças.
Uma pandemia, a Covid-19, está assolando o planeta. O autoritarismo, ressurgindo por todo o globo. Colapso climático, aceleração da extinção em massa de espécies, convulsões sociais, perda da Amazônia e seus povos nativos... E, por cima disso tudo, sinais amplamente disseminados daquilo que há de pior em nós: extremismo, sociedades rachadas, racismo, xenofobia, intolerância, ódio — reações que naturalmente vêm à tona quando ficamos assim acuados.
Estar dentro de uma distopia real é muito diferente de ver isso em um filme ou livro. Vem uma sensação física de perder o rumo ou chão. Onde estou? Como digerir isso? O início do fim do mundo é um conceito que cabe em nossas mentes? Talvez seja por isso que muitos prefiram não olhar.
Pandemia e crise política
É difícil deixar de pensar nessa pandemia e todas as suas consequências. No Brasil, ainda se soma o caos político. O temeroso desafio é ver com um olhar mais amplo, para enxergar algo ainda mais terrível: se continuarmos com nossa "normalidade", Covid-19 e crise política serão turbulências passageiras, frente ao que está por vir: um longo e vasto colapso financeiro, climático, social e ecológico; ou, basicamente, o fim da civilização como a conhecemos.
Como dizem nos EUA: "Trump não é a doença, é o sintoma". Sintoma de uma sociedade doente, agonizante, desesperada. O problema não é um político ou partido. Em última instância, não é nem o capitalismo predatório, já que isso também é só um sintoma de um desamor, um egoísmo institucionalizado em que o lucro rápido, o prazer instantâneo, são tudo o que importa. Para conseguirmos isso, não há moral ou regras. Vale tudo.
Não há como continuar assim por muito tempo, o mundo entra em colapso. É isso o que estamos vendo.
Mas não podemos deixar de considerar a causa mais profunda desta pandemia, que é nossa violência com a natureza. Se não mudarmos, continuaremos nesse ciclo de guerra contra o mundo natural.
“Mudanças climáticas são simplesmente uma ameaça à existência da maioria da vida no planeta, especialmente a vida da humanidade.”
António Guterres, secretário-geral da ONU, durante a conferência global R20, na Áustria, em 2019.
Emergência climática
Apesar de estar inseparável dessas outras crises, o colapso ambiental é algo urgente pois arruína não apenas o ambiente em que vivemos (incluindo água, comida e ar), mas também nossas próprias vidas e as vidas de um vasto número de seres.
Além da atual confluência de desastres, o colapso climático e ecológico traz múltiplas consequências:
disseminação de doenças (por exemplo, novos vírus, bactérias ou insetos-vetores migrando para cidades após desmatamento);
conflitos civis devido à seca e suas consequências (falta de comida, água, migrações);
áreas costeiras permanentemente inundadas e seu imenso custo financeiro;
incêndios e tornados sem precedentes;
aceleração da extinção de espécies animais e vegetais em florestas e oceanos;
crise econômica, desemprego e convulsão social;
ascenção de ditaduras em momentos de vulnerabilidade;
efeitos-bola-de-neve, quando pontos críticos de aquecimento são atingidos e as mudanças começam a se retroalimentar em um padrão fora de controle (por exemplo: incêndios destroem florestas, que produzem menos chuva e capturam menos carbono, provocando mais aquecimento, que provoca mais incêndios...)
Urso polar senta na beirada de uma ilha do Alasca, nos Estados Unidos. Deveria haver neve e gelo no local nesta época do ano, mas o inverno foi mais quente do que o comum. Imagem: Patty Waymire/National Geographic Your Shot
Extinção em massa
A aceleração da perda de espécies é mais uma grave consequência já em andamento. O conselho da ONU sobre biodiversidade estima que 150 espécies estão desaparecendo todo dia, ou uma espécie a cada 10 minutos.
Não é algo causado exclusivamente por mudanças climáticas, mas o denominador comum ainda é a atividade humana: desmatamento, contaminação, pesca industrial etc. A velocidade com que espécies estão sendo extintas chega a ser mil vezes superior ao desaparecimento natural.
Há extinção em massa quando mais de 75% das espécies desaparecem. Na história da vida na Terra, houveram cinco grandes extinções. O atual acúmulo de gases do efeito estufa na atmosfera, que provoca o aquecimento da Terra e tem consequências drásticas para toda a vida, é também o que levou a quatro dessas extinções em massa no planeta.
A diferença é que agora a extinção não se trata de um desastre natural.
Futuro distante? Não, já está aqui
Partes do globo mais vulneráveis ao clima, como a África, já estão em situação emergencial há anos, enfrentando secas, inundações, falta d'água e alimentos, epidemias, migrações, conflitos e extinção de espécies em escala inédita.
Outro exemplo é a guerra civil na Síria, iniciada em 2011, que provocou a migração de cinco milhões de refugiados para outros países. Um fator-chave foi uma seca de quatro anos, consequência do aquecimento global, que provocou falta de alimentos e migrações internas massivas, levando ao caos social e à explosão de conflitos.
A urgência de medidas drásticas para zerar as emissões de CO2 estão sendo noticiadas em todo mundo desde 2018, quando a ONU deu o ultimato para os governos agirem. A poluição da atmosfera não apenas destrói o clima e nossas condições de vida, mas mata 4,2 milhões de pessoas por ano (mais de dez vezes o número de mortes pela Covid-19, em 5 de junho) devido a doenças provocadas pelo ar poluído, segundo a Organização Mundial de Saúde.
Basicamente, se quisermos evitar catástrofes que vão custar milhões de vidas e trilhões de dólares, até 2030 temos que reduzir as emissões em 45%, zerando em 2050. Isso só será possível com uma mobilização mundial na mesma escala dos esforços unidirecionais durante a 2ª Guerra ou após a Grande Depressão mundial dos anos 30.
A Covid-19 tem inspirado algumas instituições e governos a colocarem o meio ambiente como prioridade nos planos de recuperação da pandemia. Mas as medidas efetivas ainda estão a anos-luz do ritmo necessário.
Porém, no Brasil, o que ocorre ainda é um retrocesso aberrante: no lugar de políticas regenerativas, estão sendo criadas medidas ainda mais destrutivas à vida, como a agroindustrialização da Amazônia e Cerrado, e todas suas consequências mortais: genocídio indígena e quilombola, redução na captura de carbono (ou seja, mais CO2 na atmosfera), transformação da Amazônia em savana em poucos anos, redução de chuvas, mais seca etc.
A ativista sueca Greta Thunberg carrega placa durante a Greve Geral pelo Clima, em Nova York. Imagem: Lucas Jackson/Reuters
Hora de agir
É por isso que, entre cientistas de áreas ligadas à atual catástrofe ou ambientalistas, predomina um sentimento de depressão e angústia. Muitos jovens também já perceberam que não há futuro. Um estudo nos EUA com pessoas entre 18 e 23 anos de idade apontou que 78% pensam em não ter filhos devido à ameaça das mudanças climáticas. E 59% dizem que sua saúde mental está sendo afetada por isso.
A melhor medida contra o desespero é a ação. Esse é o aspecto animador sobre a singularidade deste momento: pela primeira vez na história há uma revolta global contra esse processo de autodestruição, que tem efetivamente mobilizado a sociedade.
Muitos jovens estão preferindo engajar-se ativamente em uma possível transição em vez de ir para a escola, liderando movimentos como a mundial Greve pelo Clima, de Greta Thunberg, ou o Sunrise Movement nos EUA. Afinal, para que estudar se não há garantia de futuro?
Há também a Rebelião contra Extinção (Extinction Rebellion), surgido na Inglaterra em 2018 e presente em 68 países, e a mobilização pelo Novo Acordo Verde (Green New Deal) internacional. Até no partido republicano dos EUA, famoso pela negação orquestrada da responsabilidade humana nas mudanças climáticas, seus jovens estão preferindo fazer algo a respeito, lutando contra as causas do aquecimento global.
São movimentos com uma abordagem mais direta, exigindo medidas no ritmo urgente de que precisamos para reverter a catástrofe. Desde 2016, cerca de 1.400 governos locais (prefeituras e estados em 28 países), além do Parlamento Europeu e mais de dez países fora da UE, declararam emergência climática, em grande parte devido à pressão de movimentos sociais-ecológicos.
O que fazer?
No curto intervalo que temos para evitar o cataclismo, apenas novos hábitos, como redução do consumo e agroecologia, não serão suficientes. É necessária a mobilização popular exigindo ações casadas de governos e corporações. Ficar esperando a boa vontade das empresas e instituições vai resultar simplesmente na situação que já conhecemos: o desastre atual.
Como consumidores de produtos, também temos responsabilidade nesse processo. A produção daquilo que consumimos é o que está causando esta crise. É crucial uma nova mentalidade sobre consumo, que não apenas considera as consequências para a natureza, mas que vê o mundo natural como parte inseparável de nós mesmos.
Precisamos de uma mentalidade que abraça e cuida de todos à nossa volta, sem preconceito: humanos, animais, plantas e o próprio planeta.
Identidade maior
Nessa causa, muitos descobrem que não se trata apenas de uma luta por nossa sobrevivência. A mentalidade regenerativa e compassiva que tanto precisamos vai sendo revelada no processo, como sendo a nossa própria natureza mais profunda, que muitas vezes está bloqueada. O mundo natural é a porta mais próxima e imediata para uma realidade mais ampla, já que nossos próprios corpos e mentes são nada mais nada menos que a própria natureza.
Como diz o mestre zen vietnamita Thich Nhat Hahn, precisamos nos abrir para "o som da Terra chorando dentro de nós". Podemos estar fechados a isso por ser algo tão gigantesco, um desastre inconcebível. É natural resistirmos. Mas esse tipo de negação apenas prolonga o desastre e o sofrimento.
A ativista e escritora Joanna Macy descreve esse processo no livro "Active Hope":
"A ideia da Terra chorando dentro de nós, ou através de nós, não faz sentido se nos vermos apenas como indivíduos separados. Mas se nos considerarmos como profundamente entrelaçados em uma teia mais ampla de vida — como na Teoria de Gaia, budismo ou muitas outras tradições espirituais, especialmente indígenas — então a ideia do mundo sentindo através de nós soa completamente natural (...)
Nossa dor pelo mundo surge de nossa interexistência com toda vida. Quando ouvimos o som da Terra chorando dentro de nós, estamos desbloqueando não apenas essa mensagem, mas também os canais de conexão que nos ligam ao mundo. Esses canais atuam como uma rede de raízes, nos abrindo para uma fonte de força e resiliência tão antiga e duradoura quanto a própria vida(...).
Quando percebemos nosso eu mais profundo como uma identidade ecológica que inclui não apenas nós, mas também toda a vida na Terra, então agir pelo bem de nosso planeta não parece um sacrifício. É como uma coisa natural a ser feita."
Não estamos defendendo a natureza. Somos a natureza se defendendo.
(para receber os textos, digite seu email na barra roxa no rodapé)