Seita do progresso
Artigo publicado originalmente no Ecoa UOL.
Recentemente reli "1984", de George Orwell, provavelmente o maior clássico distópico de todos os tempos. Não estava atrás necessariamente de insights sociopolíticos. Apenas gosto de ficção científica e, como li esse livro há algumas décadas, sabia que reler seria melhor do que o primeiro contato.
Não tive como deixar de pensar na "permacrise" que vivemos — essa foi a palavra do ano de 2022, escolhida pelo dicionário inglês Collins. Assim como o termo "permacovid", permacrise é sobre um reconhecimento que se estabeleceu definitivamente: o normal agora é um estado de crise. Ela não só é permanente, mas também é uma "policrise", englobando múltiplos declínios simultâneos e interligados: colapso ambiental, guerra, protofascismo, epidemias, crise econômica, racismos e supremacismos variados, neoliberalismo predatório etc.
No pesadelo imaginado por Orwell, uma das maneiras de assegurar o controle e impedir a revolta é a constante e massiva disseminação de mentiras. Não é exatamente o que chamamos hoje de "fake news", mas seu objetivo é o mesmo: controlar e direcionar a sociedade.
Em "1984", isso vem na forma de notícias incessantes sobre o ótimo desempenho econômico do governo: "A produção nunca foi tão alta. O país experimenta contínuos recordes de avanços e prosperidade". As pessoas festejam e comemoram, mesmo vivendo em abjeta escassez e austeridade.
Hoje não vemos assim notícias explicitamente falsas sobre nosso "progresso". Mas a história nas entrelinhas com que somos bombardeados é basicamente a mesma: a vitória da civilização moderna. "Nunca fomos tão prósperos, saudáveis e felizes. Se há dificuldades, elas podem ser superadas com esforço em direção à acumulação de bens. Não é isso que fizeram as pessoas ricas e poderosas? Então a quem devemos esse sucesso? Ao mercado, suas corporações e os governos que o defendem. Devemos admirar os bilionários, personificações sublimes dessa grande bonança."
A necessidade de afirmar isso aparece com frequência nas narrativas que contamos a nós mesmos sobre a história da humanidade, da economia ou da civilização como um todo.
No pesadelo imaginado por Orwell, também é essencial redirecionar a raiva e frustração para um suposto inimigo da sociedade. A mídia controlada abunda com notícias de revolucionários subversivos sendo esmagados e humilhados, suas derrotas sendo mais comemoradas do que gols na Copa do Mundo; mas o líder ameaçador continua sempre ali à espreita, imortal como um tipo de Satanás político.
É muito parecido com algo que já nos acostumamos. Historicamente, uma das características que definem movimentos fascistas e similares é essa insistente canalização da raiva em direção a inimigos fabricados. "Os culpados são essas pessoas que degeneram nossos valores: as feministas, gays, imigrantes, ativistas de direitos humanos, drogados..."
Nessa narrativa, a fonte do problema não é o atual sistema político-econômico que busca dar cada vez mais privilégios aos privilegiados, retirando da população em geral. "Então a culpa da pobreza, da miséria, da falência da saúde e educação, ou basicamente de tudo que te enraivece é ... (dependendo do contexto, pode ser colocado aqui: comunismo, globalismo, pessoas de outra etnia, cultura ou orientação sexual, vacinas etc)."
É algo que parece uma seita.
Talvez não seja coincidência que histórias sobre seitas parecem estar chamando mais atenção. Há comunidades inteiras que caem sob a hipnose desse ou daquele charlatão, pessoas esperando salvação por extraterrestres, fanatismos religiosos que decaem na violência, lavagem cerebral, abusos; ou mesmo movimentos políticos extremistas.
É fácil olhar isso de fora e imaginar que essas vítimas seriam pessoas "anormais" ou desequilibradas. Mas um aspecto surpreendente mostrado, por exemplo, nos documentários sobre esse fenômeno é que não, não são pessoas essencialmente diferentes de nós, da "normalidade" que imaginamos possuir.
Parece que estamos mais vulneráveis e manipuláveis em relação à essa dinâmica de seita. Um artigo provocador que li sugere que o atual culto ao progresso, dominante em nossas sociedades, segue a lógica de uma mega-seita. Por exemplo, é praticamente impossível convencer alguém dentro de uma seita de que suas crenças e valores se baseiam em enganos.
Essa resistência também vem do consenso entre as pessoas ali dentro, que é algo além de uma simples ideia, mas também uma realidade social, algo que traz um senso de união em torno de um suposto bem.
Dá para observar esse tipo de mentalidade no atual "culto ao progresso" de nossa civilização, que costuma envolver elementos extras, como crença na supremacia humana em relação a todas as formas de vida, no culto a produtos tecnológicos, na mercantilização de tudo e, em muitos casos, até no egoísmo como um valor louvável (afinal, egoísmo é o oposto de solidariedade).
Eu mesmo não me considero totalmente fora dessa "seita", já que através dos produtos que consumo e até de certa inação, valido e contribuo dando continuidade — mesmo que mínima — a esta situação. Mas se dermos um passo para trás e examinarmos os valores e ideias sob as quais estamos operando, é possível chegar à conclusão que isso é tão insano quanto a lavagem cerebral de algumas seitas.
Olhar com lucidez e clareza a situação onde nos encontramos é um primeiro passo para a mudança genuína. Do contrário, corremos o risco de ficar apenas decorando as paredes de uma prisão.