Segue um texto para quem pratica ou se interessa pelo budismo. É a introdução para esse livro curto que acabei de traduzir do tibetano. Ele contém dois textos clássicos (do século 14) cujos temas são bastante importantes no budismo tibetano: Diferenciação entre Consciência e Sabedoria, e Introdução à Essência Tathagata, ambos de autoria do mestre tibetano Rangjung Dordje, o 3º Karmapa.
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Introdução do tradutor
Este livro reúne dois textos cujos temas são cruciais para o budismo tibetano: Diferenciação entre Consciência e Sabedoria, e Introdução à Essência Tathagata, escritos pelo 3º Karmapa, Rangjung Dordje, no século 14. Ambos sintetizam os ensinamentos essenciais da linhagem indiana Yogatchara, que estão na base da prática Vajrayana, um aspecto essencial da tradição budista dos Himalaias.
Como são textos curtos que exigem um conhecimento básico do budismo, seguem alguns pontos que ajudam a compreender o contexto dessas obras.
A filosofia budista Mahayana ensina que normalmente enxergamos o mundo e a nós mesmos através de um tipo de filtro que obscurece a realidade genuína. Essa ilusão é a fonte de todo sofrimento. Já a integração da visão de mundo que reconhece que as coisas não têm a realidade que imaginávamos, permite não apenas a libertação de aflições — como raiva e fixação no desejo — mas também possibilita o florescimento de qualidades como a atividade compassiva espontânea e universal.
As pessoas que adentram esse caminho são chamadas de bodisatvas e, conforme sua realização da compaixão que repousa na natureza buda, estão mais próximas ou distantes da budeidade final. Esses níveis de realização são referidos como os 10 bhumis (que os textos deste livro citam com frequência).
Outra referência comum são os Cinco Agregados, que é o modo como o Buda explicou a divisão de corpo e mente, para facilitar a compreensão de que nossa identidade, ou eu, é muito mais fluída, interdependente e relativa do que imaginamos. Os cinco são:
Forma: abrange o corpo e todos os estímulos sensoriais que chegam através dele.
Sensação: são as sensações de prazer, dor ou indiferença sentidas nos estímulos sensoriais.
Categorização: é a discriminação discursiva desses estímulos. Por exemplo: “isso é fogo”, “é meu alimento preferido”, “é um carro” etc.
Formações mentais: são os pensamentos e impulsos gerados pela categorização. Por exemplo: “quero isso”, “preciso me esforçar mais” etc.
Consciência: é a mente que percebe objetos dos sentidos ou da mente, e acompanha as quatro etapas anteriores. Por definição, a consciência implica a ideia de que há um sujeito e seus objetos.
O quinto agregado ainda se subdivide em oito consciências, que são explicadas nesses textos. Essas divisões e processos são relativos e a fixação neles como sendo inerentemente reais obscurece a sabedoria primordial da “natureza buda”, a perfeição que já existe como a essência de toda realidade, mas que está encoberta por essa camada ilusória.
O que diferencia o budismo Mahayana de outras tradições espirituais é que essa natureza jamais é considerada como um deus ou alma. E ela também é inseparável de suas próprias expressões, que são as aparências relativas, do mesmo modo que o Sol é inseparável de seus raios iluminadores — apesar de que também não é possível dizer que natureza e expressão são a mesma coisa.
Isso significa que a prática não implica necessariamente em “abandonar o mundo”, mas sim reconhecer essa natureza de sabedoria e compaixão em tudo, que se desdobra em uma atividade espontânea que beneficia o maior número possível de seres.
Já o budismo tântrico ou Vajrayana emprega técnicas de meditação que, de modo direto, visam acessar e dar livre expressão à natureza buda. É por isso que, para este tipo de prática, um fundamento é a realização ou entendimento sobre os modos como a camada de ilusão se forma — através da mente — e como essa natureza perfeita já existe agora. Ela se expressa parcialmente durante o caminho, ou totalmente na realização da budeidade, que é a neutralização final de todas aflições, fixações e ilusões, simultânea à expressão plena de sua atividade benéfica e imparcial.
Yogatchara
Os dois textos deste livro basicamente sintetizam a visão Mahayana necessária como base para a prática do Vajrayana. Sua principal fonte são as escrituras da tradição budista Yogatchara — que se consolidou no século 4, na Índia, com os textos de Maitreya e Asanga — mas também inclui diversos aspectos da filosofia Madhyamaka, que expõe a qualidade vazia de existência inerente da realidade aparente (é isso a que se refere “vacuidade”).
A tradição Yogatchara, inicialmente, fazia um contraponto à ênfase em argumentos e definições filosóficas comum entre praticantes budistas da época. Seu foco principal era a prática de meditação, já que Yogatchara literalmente significa “prática de ioga”. Nesse contexto, ioga se refere à união das duas principais técnicas de meditação budista: shamata (repouso) e vipashyana (insight).
Todas as diferentes escolas budistas que se formaram ao longo dos séculos — devido às diferentes ênfases e interpretações sobre as instruções do Buda — concordam que aquilo que chamamos de realidade é um tipo de ilusão. Mas há certa discordância sobre o que estaria por trás dessa ilusão: há quem defenda que isso seja constituído de partículas fundamentais, ou por uma realidade que nossos sentidos limitados não alcançam, por exemplo.
Também chamada de “Mente Apenas”, a escola Yogatchara é conhecida pela afirmação de que não há nenhuma realidade externa, sendo tudo criação da consciência. Na filosofia ocidental, essa posição é conhecida como “idealismo”, e diversos pensadores e cientistas eminentes concordam com essa visão.
Em muitos textos filosóficos estudados no budismo tibetano, a visão Yogatchara é contestada pela escola Madhyamaka. No entanto, o que é negado não é a ideia de que tudo é criação da consciência — isso é aceito no contexto Madhyamaka. O que é refutado é a noção de que essa mente teria existência real ou inerente. Na verdade, as escrituras Yogatchara (baseadas nos sutras do Buda) não fazem essa afirmação. Pelo contrário, é ensinado claramente que a mente também não é um fenômeno com existência própria. A ideia de que a mente tem existência inerente era a posição de um grupo minoritário na escola Yogatchara, e é essa contradição que as escrituras Madhyamaka apontam1.
Apesar de nos colégios monásticos tibetanos, no contexto do estudo Madhyamaka, a escola Yogatchara ser tratada como uma “visão inferior”, cronologicamente, ela é posterior. Portanto, do ponto de vista histórico, ela é entendida como uma sofisticação ou elaboração em relação à Madhyamaka clássica.
Para a leitura dos textos deste livro, este esclarecimento pode ajudar, pois essa ideia de que a tradição Yogatchara seria menos relevante do que Madhyamaka é muito comum. Na tradição Karma Kagyu, essas duas linhagens Mahayana — que também são a origem das duas maneiras de transmitir o voto bodisatva — têm a mesma importância. Em especial, a visão da natureza buda é essencial para a prática Vajrayana, e os ensinamentos sobre a realidade como sendo a mente também são um elemento fundamental na prática de Mahamudra.
Sobre os textos
Diferenciação entre Consciência e Sabedoria explica a divisão da mente em oito consciências e como sua purificação ou transformação resulta na revelação das Cinco Sabedorias da budeidade.
Já Introdução à Essência Tathagata sintetiza os ensinamentos sobre a natureza buda, a essência pura já presente que é a natureza da mente de todos os seres e também da realidade em si.
Os dois textos são bem concisos e diretos, tendo uma qualidade mais prática do que as escrituras clássicas sobre esses assuntos. Também são considerados mais como “canções de realização”, um gênero em que grandes mestres descrevem o que realizaram de modo inspirador, junto com instruções diretas.
Por isso, eles partem do princípio de que os princípios básicos budistas já são bem conhecidos. Em particular, as referências à vacuidade são bem sumárias. Para quem quiser compreender mais sobre isso, o capítulo 9 de Engajamento na Ação Bodisatva, de Shantideva, é uma boa introdução.
Já a natureza buda, o tópico do segundo livro, faz parte do “3º giro da roda do Dharma”, termo que se refere às três fases, ou ciclos, nos ensinamentos do Buda Shakyamuni. No 1º, a ênfase é em disciplina, renúncia e refúgio. O 2º ensina basicamente a vacuidade, tendo a compaixão como essência.
Esses ciclos também são estágios de prática, ou seja, a premissa para praticar os ensinamentos do 2º giro é a realização ou bom entendimento sobre o 1º giro. E os ensinamentos sobre a natureza buda do 3º giro, em especial, podem não ter sentido se a vacuidade (do 2º giro) ainda não foi realizada, no mínimo, como um entendimento sólido. Isso porque, se não há a compreensão sobre o que é a vacuidade da natureza buda, então, ela se torna essencialmente a mesma coisa que um deus, o que contraria todo o ensinamento budista.
Na tradição Karma Kagyu em particular, esses dois textos são considerados como um tipo de apêndice para a obra Significado Interno Profundo, também de Rangjung Dordje. Ela trata da visão para as práticas tântricas do estágio da consumação, e é um dos três textos obrigatórios para a prática Vajrayana — os outros dois são: Sublime Contínuo (Uttaratantra) e Duas Partes do Tantra Hevajra. Esse trio foi definido também pelo 3º Karmapa.
No entanto, apesar da ligação com o Vajrayana, os dois textos deste livro são essencialmente Mahayana e não contém nenhum tipo de restrição (que é comum em textos Vajrayana que exigem determinado nível de prática).
Autores
O 3º Karmapa, Rangjung Dordje (séc. 14), foi um mestre tibetano renomado pela combinação de vasta erudição — especialmente sobre tantra — com profunda realização. Na linhagem dos Karmapas, ele é um dos principais responsáveis pela síntese Mahayana e Vajrayana na visão que orienta a prática nessa tradição.
Já Djamgon Kongtrul (séc. 19), o autor dos comentários em que as notas se baseiam, foi outro mestre crucial para essa linhagem, e também para outras escolas do budismo tibetano, sendo um dos principais propagadores da abordagem não sectária (“rime”). Muitos dos principais manuais e comentários de escrituras praticados na linhagem Karma Kagyu são de sua autoria.
Tradução
Os originais tibetanos utilizados foram as versões digitais publicadas pelos monastérios Karma Lekshe Ling e Rigpe Dorje Institute. As estrofes estão delimitadas pelos títulos de seções e seguidas por notas explicativas, ambas baseadas nos comentários de Djamgon Kongtrul.
Os títulos de seções são particularmente úteis pois, ao indicar o contexto de cada verso, reorientam a leitura e expandem o significado.
Estes textos foram traduzidos no início de 2022 para o centro budista Palpung Lekpun Nang.
Conforme afirma Djamgon Kongtrul no capítulo sobre tradições filosóficas budistas do Tesouro do Conhecimento (shes bya mdzod), que foi traduzido em inglês como The Treasury of Knowledge, Book 6, Part 3: Frameworks of Buddhist Philosophy.